Minha conterrânea Tânia Pellegrini, amiga no Facebook que me honra como assinante desta Casa Literária, publicou a seguinte postagem no dia em que Jair BolsoNero, o Messias, tornou-se réu no STF pelos atos golpistas:
Foi um Grande Dia, não foi?
Um integrante do grupo de amigos de Tânia, cujo prenome principia por “J” — e assim a ele me referirei doravante —, postou um comentário em que demonstrava desalento.
Teria sido se tudo tivesse ocorrido dentro da legalidade, da justiça, fora das suposições casuísticas.
Não pude me conter. Das profundezas de meus quase quarenta anos de modestos conhecimentos jurídicos e exercício da advocacia veio-me uma comichão que me assomou o espírito e não me permitiu calar:
J., perdão. Até para meu aprendizado. Apesar de meus 37 anos de exercício da advocacia, hoje um modesto procurador municipal, gosto muito de aprender com os mais sábios e experientes.
Em que consistiria a ilegalidade?
O que estaria ocorrendo "fora" da justiça?
O que estaria "dentro" das suposições?
Reitero, é para meu aprendizado.
Desde já agradeço.
Em réplica, ele me devolveu um comentário em que dizia que “desde o início esteve tudo errado”. Alegou que “os juízes deviam se declarar impedidos: todos eram (e continuam a ser) inimigos ferrenhos dos réus” — e que eles mesmos teriam assim se declarado “em ‘n’ ocasiões”. Que “a defesa (…) não tiveram (sic) o devido acesso à prova”. Afirmou que é advogado “há 50 anos”, está estarrecido e que “já esperava por esse meio-final desastroso”, concluindo que “enterramos o devido processo legal”.
Confesso que fiz a introdução toda cheia de dedos porque imaginei, a princípio, que o autor do desalentado comentário fosse um leigo, um estranho ao Direito. Qual não foi minha surpresa quando ele informou ser advogado “há cinquenta anos”.
Trepliquei:
J., meu caro, perdoe-me novamente.
Bom, você tem mais experiência do que eu, mas meu ponto de vista é compartilhado por luminares do direito, como Pedro Estevam Serrano, Lenio Streck e os próprios ministros do STF, que já decidiram esses pontos de forma colegiada.
Ou confiamos no STF como intérprete e guardião da Constituição Federal ou abdiquemos de qualquer forma de republicanismo.
Desconheço as "n" ocasiões em que "eles mesmos" teriam se declarado como "inimigos" de qualquer dos réus. Não vi uma única vez. Se o colega puder refrescar minha memória, ou, no caso, suprir essa minha lacuna de ignorância, agradeço.
Vamos lá:
1. A competência para processar e julgar atos contra o Supremo Tribunal Federal é do próprio Supremo. Está no regimento interno, que tem força de lei. Não cabe mais discussão a respeito;
2. Não sei a quais "inimizades" você se refere entre os ministros e os réus. O que vi foi o líder máximo da conspirata forçar uma inimizade artificial, primeiro xingando Barroso, quando este era presidente do TSE, lá atrás; depois, chamando o próprio Alexandre de Moraes de "canalha" (e, como vimos, à socapa arquitetando-lhe a morte). Jamais vi Barroso ou Moraes retrucarem, achincalharem o dito cujo, que tudo o que fez e segue tentando fazer é escolher seu próprio juiz.
Recomendo-lhe ver, se não lhe forem suficientes os votos dos ministros ao apreciarem as questões, as explicações dos juristas que mencionei. O youtube está repleto de entrevistas de ambos, e outros de igual grandeza, explicando a respeito;
3. O acesso pleno às provas terão os réus agora, por seus advogados, a partir de ontem. O colega trata como se o julgamento de ontem fosse o acórdão decisivo e condenatório. Não!
Foi apenas um juízo de admissibilidade, de recebimento da denúncia, necessário para se consolidar o "actum trium personarum", autor, juiz e réu.
O princípio a ser defendido e cumprido é o do devido "processo" legal, e não do devido "inquérito". A partir de agora, já formalmente investidos na condição de réus, no âmbito de um processo assim consolidado, todos eles terão assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório, no âmbito da fase de instrução que está só começando;
4. Como podem os réus, por seus defensores, não ter tido "uma condução justa" se só ontem a denúncia foi recebida? Se somente ontem conformou-se o "processo"?
A "condução" do processo, justa ou injusta, começará agora e não temos como adivinhar se será "com" ou "sem" justiça;
5. O colega confunde o que está acontecendo com o que foi a falecida operação Lava Jato, ela sim, que enterrou o devido processo legal, só tardiamente corrigido;
6. Você arrolou generalidades, sem se ater à concretude do que alega. Sigo aguardando esclarecimentos concretos.
Reafirmo minha disposição em aprender, especialmente de quem tem tanta experiência a mais do que eu;
7. Essa sua descrença "no Brasil" é recente, é episódica, ou é antiga e estrutural?
Como lhe disse, sou advogado há quase quatro décadas, período durante o qual divergi de diversas decisões judiciais — e continuo divergindo, pois sigo em plena atividade —, das quais recorri e recorro, quando envolvidos clientes meus, ou escrevi e escrevo artigos criticando, quando públicas; jamais, porém, perdi a crença nas instituições brasileiras.
Como o presidente Lula, que poderia ter fugido diante de uma iminente prisão injusta e ilegal, decretada por um juiz evidentemente incompetente, evidentemente parcial, por causas inexistentes e por fatos alegados desprovidos de provas, ainda assim ele se submeteu, entregou-se, teve ceifados 580 dias de sua vida já em idade avançada, também eu não perco a fé na justiça brasileira.
Lula tinha consciência da própria inocência, jamais admitiu sequer se submeter ao uso de tornozeleira eletrônica; foi crítico aos seus algozes, muitas vezes expressou, como humano que é, sua justa indignação; jamais, porém, investiu contra o Judiciário, contra o STF, nem mesmo contra o MPF ou a PF. Jamais instigou seus apoiadores a seguirem esse rumo equivocado. Jamais implorou ou sequer cogitou ser "anistiado". Bom, era e é um estadista, o maior de nossa História. Já o outro...
Digo isso porque, sendo nós ambos profissionais do Direito, eu me pergunto que esperanças o colega passa aos clientes, ao ser por eles contratado, se o próprio colega não crê na instituição Poder Judiciário do país em que atua.
Eu, nessa situação, data venia, não sentiria ânimo algum para seguir atuando na profissão e já teria escolhido outra coisa para fazer da vida; digo-lho de mim, e com todo respeito ao colega;
8. Todos os réus serão proporcionalmente responsabilizados, na exata proporção de suas responsabilidades, como assim já vem ocorrendo com os que já foram condenados.
Grande abraço!
Ele voltou à carga dizendo que “foi ingenuidade minha (ia dizer idiotice) tentar contra-argumentar”. Ingenuidade ou idiotice dele, claro. Alegou que o meu posicionamento “é político e política e justiça raramente se harmonizam”. Criticou o fato de eu afirmar que o STF é “intérprete e guardião da Constituição Federal”, o que, disse-me ele, “foge à minha capacidade de compreensão”.
Contou que “durante 35 anos” lutou para que a esquerda chegasse ao poder e que chegou a ser preso em 68. Relembrou que “chegamos ao poder em 2002” e contou que no ano seguinte, em 2003, já estava “completamente decepcionado”. Os motivos? “Os mesmos que hoje devastam e assolam o país”.
Embora meu interlocutor tenha-me dito que eu não precisava me “dar ao trabalho de responder”, claro que eu não deixaria de fazê-lo. Ao contrário dele, não temo, não fujo do debate:
J., eu lhe forneci argumentos jurídicos.
Quem diz que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição não é a minha imaginação ou minha ideologia, mas ela mesma!
Recomendo-lhe abrir um exemplar da Constituição ou fazer uma busca no Google — como profissional do Direito o amigo certamente não terá dificuldade — e em instantes se deparará com o art. 102 da Constituição, que assim dispõe:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a GUARDA da Constituição.
O colega questionou a competência do STF para julgar os atos ocorridos no 8 de janeiro, eu lhe forneci a informação jurídica de que a competência está dada no regimento interno do STF, como de fato está.
O tema já foi discutido nos autos em vários processos e decidido pela instância judicial máxima do país que, creio que ao menos isso o colega deva conhecer e concordar, é o próprio STF!
Eis o dispositivo a que me refiro:
Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.
Se essa realidade jurídica lhe "foge à compreensão", de fato, data venia, o colega está na profissão errada, perdoe-me.
O colega mencionou, genericamente, que "todos os ministros do STF são inimigos ferrenhos dos réus" e eu lhe pedi ao menos um fato que o demonstrasse. O colega trouxe a confortável alegação de que eu teria trazido apenas "argumentos políticos" e que, portanto, concluo eu acerca dessa sua visão, o meu passado político me desqualificaria para um debate jurídico.
É a maneira menos decente de refugir a um debate qualquer — desqualificar o interlocutor, ainda que na forma tentada.
Tratei-o desde o primeiro momento com respeito, respeitando inclusive e sobretudo a longevidade anunciada pelo colega na atividade jurídica.
Já o colega tenta me desqualificar como debatedor jurídico por uma razão não jurídica, meu passado político. Contraditoriamente, o colega apela também a seu próprio passado político, ao informar que "lutou contra a ditadura em 68", artimanha conhecida, pareceu-me — e me desculpe se me engano —, que visa a dar foros de legitimidade à sua atual posição contrária à esquerda.
Vivas à contradição!
Francamente, prefiro não expor o que estou pensando sobre essa sua conduta. Não me anima tentar desqualificar quem quer que seja, muito menos um debatedor sobre questões jurídicas que afirma ter cinquenta anos de exercício profissional, informação da qual sequer me permiti expressar desconfiança.
Por outro lado, não sou de fugir da raia. Não me acovardo.
Não faço ideia de quais motivos o decepcionaram com a esquerda no poder, mas a toda evidência, enquanto eu me esforcei para fornecer argumentos jurídicos, foi o distinto colega quem se ateve a expressar argumentos meramente políticos.
O amigo diz ter lutado contra uma ditadura e que hoje "luta contra outra". Digo-lhe exatamente a mesma coisa.
Lutei também contra a ditadura, embora já no finzinho dela — eu era garoto nos anos 80, sou de 63 —, e hoje empreendo luta contra os que recentemente tentaram reimplantá-la no Brasil.
Essa luta não terminará jamais, pelo jeito, pois há e sempre haverá um milico, um Braga Neto, um Augusto Heleno, um cabo, um soldado, um capitão qualquer e seus filhotes articulando um novo golpe.
Se o amigo de fato foi um combatente da ditadura militar, hoje tem motivos de sobra para se regozijar de um Brasil que, finalmente, optou por punir seus maus militares.
Há uma realidade jurídica no país que começa pelo reconhecimento da existência do grande pacto de 1988, que se consubstanciou na chamada Constituição Federal. Recomendo-lhe fortemente conhecê-la.
Se o colega nega sua existência, se renega os princípios e dispositivos que a compõem, se prefere ficar na argumentação meramente política, é escolha sua.
Mas não diga o inverso.
Não atribua a mim uma conduta que é sua!
Respeitosos abraços.
Assim foi até que o sujeito se revelou. Disse que eu me faço de desentendido, que “a nossa suprema corte é uma vergonha nacional e internacional”, que “nunca como agora ela foi tão desacreditada”, que “transgride e ostensivamente ignora a constituição”, lamentou que assim aja a Suprema Corte “pela manutenção do banditismo e corrupção que desmedidamente se instaurou nas instâncias de poder no país”, tudo recheado de infinitas reticências.
Até que o senhor Reticências expôs, enfim, a fonte de tanto conhecimento:
As redes sociais denunciam isso sobejamente... o senhor, se pede comprovação disso tudo, demonstra total desconexão com a realidade...
Eu, então:
J., eu desentendido? Nos'siora. O amigo não me conhece mesmo. E agora digo, de minha parte: felizmente. Felizmente para mim, esclareço.
"A nossa suprema corte é uma vergonha nacional e internacional".
É mesmo? É esse seu juízo político sobre o STF? Baseado em que fatos concretos?
É com esse conceito que o colega advoga? Ainda não me disse como pode convencer os clientes de que suas causas estarão em boas mãos, em mãos de quem no mínimo atua como profissional do Direito por crer no sistema jurídico pátrio. Sigo curioso. Enfim, cada qual com seu cada qual.
O STF "transgride e ostensivamente ignora a constituição"? Forneça-nos dados concretos, por gentileza.
"Tudo pela manutenção do banditismo e corrupção que desmedidamente se instaurou nas instâncias de poder no país". A que "banditismo e corrupção", afinal, esse seu juízo político se refere?
Vejo, ao contrário, o STF impondo-se contra o banditismo e a corrupção que recentemente testemunhamos, a começar pela trama de um golpe de estado, passando pela corrupção de quem se apropriou, literalmente, das "joias da Coroa" e correu vendê-las para pagar indenizações a que o sujeito foi condenado.
Ah, claro. Agora entendi. "As redes sociais denunciam isso sobejamente".
O colega pertence a essa legião de brasileiros que se informa pelas tias do Whattsapp — e sou eu quem "demonstra total desconexão com a realidade"! Valham-me os céus!
Ora, faça-me um favor.
Até aqui, vinha debatendo com seriedade e com o respeito que a todos dedico. Sequer desconfiei que perdia meu tempo tentando convencer um cidadão terraplanense.
Perdoe-me, amigo. Eu prefiro debater ao nível da realidade. Da realidade real, do solo firme sobre o qual apoio meus pés.
Abraços. Quando o amigo retornar da viagem à Terra Plana, pousar em chão firme, passar pelos processos de descontaminação, talvez possamos voltar a debater.
Por ora, recomendo-lhe ler este meu relato acerca de minha própria incursão pela Terra Plana, que o amigo parece conhecer tão melhor que eu:
(link para minha crônica “Notícias de um Brasil paralelo”)
J., meu interlocutor, ao fim e ao cabo trouxe o meme acima. Diante do meu comentário, voltou para afirmar que eu desqualificava o ex-ministro. Mal sabe que o próprio ministro fazia troça dessa condição de ser quase sempre voto vencido em suas proposições.
Nada disso, porém, deslustra a verdade contida na postagem de minha querida amiga Tânia. Sim, foi um grande dia. Enorme! Mas maiores ainda virão. Aguardemos.